21.12.04

Composição Ex. 8 - Sou Um Cão

- Não doutor, tenho consciência que estou mal e venho pedir ajuda pela sétima vez este ano. Não consegui abstrair-me deste encarceramento em que me encontro.
Sinto que estou pior. Eles ladram. Todos os animais ladram e até o som do autocarro a chegar à paragem, faz um ruído estridente que culmina com um latido de um cão a sofrer. É horrível. Os animais latem o dia todo, os donos respondem a ladrar e de repente vejo-me com a cabeça numa dormência doentia que me leva ao desespero. Chego a cair para o chão com as mãos nos ouvidos numa surdina estonteante e dou por mim a latir. Já no hospital, não sei quanto tempo depois, com sedativos, tento abrir os olhos devagar…não sei quem me trouxe desta vez, e prefiro nem saber. A enfermeira tem na lapela o seu nome – Carminda. Olho-a com indignação e tenho vontade de lhe perguntar porque não escovou o pêlo de manhã. Está toda eriçada. Se eu fosse trabalhar naquela figura, mandavam-me directinho para casa. O Doutor está a olhar-me com surpresa, mas a esta altura já devia prever a minha queda. Não tenho cura mas posso viver devidamente controlado. Ontem, ainda no hospital, pelas 12.30h levaram-me o almoço à cama. Tinha o olhar fixo na televisão do quarto e solto um latido de contentamento. Mesmo deitado senti a cauda a abanar. Adoro ver o programa do almoço, porque a essa hora costuma passar o anúncio do PedroEgripal…e de repente fez-se luz na minha cabeça: Se levar umas argolas de PedroEgripal comigo cada vez q vou trabalhar…lanço-as para longe e o ladrar dos animais funde-se com o barulho típico da cidade, e assim aquela mistura explosiva de latidos e ganidos deixa de me fazer tanta confusão. Estou num dilema: PedroEgripal vegetal ou PedroEgripal carne?
A minha mulher gosta de mim. Diz que sou puro. Chegou a dizer-me que se fosse cão, tinha todas as probabilidades de ganhar um prémio. Ela diz sempre “se fosses cão”…até parece que não sou um verdadeiro cão! Antes de ir trabalhar ela analisa-me a boca: Lábios grandes, pouco espessos, não pendentes e bem sobrepostos. Céu-da-boca pigmentado de preto, assim como os bordos labiais. Dentes fortes, brancos, bem implantados. Doutor, só lhe digo: Pareço outro! Meio caminho andado para o dia me correr bem. Na paragem, enquanto o autocarro não vem, observo as pessoas e olho-as com compaixão. Nem toda a gente tem dinheiro para ter um pêlo destes e este é sem dúvida o pormenor que mais desperta a curiosidade dos passantes. É preciso muito óleo de fígado de bacalhau, muita vitamina B12. Por sua vez, como não quer a coisa, finjo que deixo cair a carteira e dou uma volta sobre mim, para me observarem bem. Rio-me para mostrar os meus dentes caninos, que estão sem uma cárie. No outro dia fiquei tão envergonhado…veja o Doutor que por causa de um problema de impotência, fui ao meu médico, o Dr. Veterinário Alberto Madureira. Depois de me ter auscultado, medido a tensão, deixou-me, por esquecimento o termómetro no recto. Só dei por isso quando um rafeiro alentejano me veio cheirar com ar superior e disse: “Epá! Cheiras-me a cão larilas”. Ups, fiquei para morrer.

M.L.

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